O texto a seguir é uma reflexão acima de um trecho do livro 21 Lições para o Século XXI de Yuval Harari. Terceiro livro do autor que explorou o passado com o livro Sapiens - uma breve história da humanidade, o futuro com o livro Homo Deus e agora explora o presente com esse brilhante e ao mesmo tempo sombrio livro. Todos os questionamentos a seguir pertencem ao autor e obviamente são abertas a debate. Afinal, é esse mesmo o propósito. Para quem gosta de explorar o pensamento crítico, o livro 21 Lições para o Século XXI, assim como os seus dois antecessores, é extremamente recomendado.
A diversidade humana é inquestionável. Seja na cultura, política e econômica. Estima-se que em abril deste ano (2019), a população mundial alcançou 7,7 bilhões de indivíduos divididos em milhares de grupos com as suas particularidades e perspectivas. Isso torna praticamente impossível compreender por completo os problemas da atualidade, mesmo que muitos (e muitos mesmo) digam compreender.
O historiador Yuval Harari em seu livro 21 lições para o séculos 21 apresenta quatro métodos muito interessantes nos quais as pessoas recorrem quando tentam compreender e julgar os dilemas morais e éticos em grandes escalas. O mais interessante nesse pequeno trecho do livro, é como isso é perceptível, não apenas nos outros, mas muitas vezes em nossas próprias opiniões e debates.
No primeiro método as pessoas buscam minimizar as questões. Compreender grandes conflitos entre nações, ideologias como se fossem duas pessoas brigando. Uma do bem e outra do mal. Ou seja, a complexidade histórica e antropológica é reduzida à um fato simples e extremamente claro. Esse tipo de visão é extremamente claro no debate político entre direita e esquerda no Brasil. Generalizações perigosas que simplificam o debate com argumentos vazios e ofensivos sem base crítica.
O segundo método consiste em utilizar narrativas tocantes que supostamente se aplicam a toda a questão. Usar exemplos diretos, tais como a vida sofrida de uma criança para justificar um ponto. Segundo o autor, o sangue das pessoas chega a ferver, os olhos lacrimejam e nelas manifesta uma falsa certeza moral. Já o problema analisado de forma mais analítica e crítica, como a pobreza em países da África, ou taxa de suicídios em aldeias indígenas na Amazônia não comovem tanto quanto a imagem de uma única criança que sofre do problema. O livro exemplifica esse método com um estudo realizado para analisar a reação da população quanto à uma questão crítica. Pediu-se que doações fossem feitas para ajudar uma criança doente ou um grupo de oito crianças doentes. A única criança doente recebeu a maior parte das doações.
O terceiro método é crítico e muito frequente em debates vazios. É a criação de teorias da conspiração. Os problemas econômicos, políticos ou sociais, locais e globais são complexos demais para se entender por completo. Segundo Harari, é muito mais simples imaginar que um grupo de famílias ricas controlam o mundo, que o governo esconde corpos de alienígenas mortos ou mesmo que a terra é plana, que as informações são manipuladas pela NASA, do que buscar compreender a complexidade da globalização, da economia, ou mesmo da astrofísica e da ciência. O autor brinca dizendo que nem mesmo as famílias multibilionárias, a CIA, os maçons, os Sábios de Sion conseguiriam entender a complexidade do mundo e mexer os pauzinhos com eficiência nos "bastidores".
O quarto e último método é a criação de um dogma. Ter a fé depositada em alguma teoria, instituição ou liderança. Religiões e ideologias servem como um porto seguro para a frustrante complexidade da realidade. Mais cedo ou mais tarde esses dogmas tornam-se inquestionáveis. A questão trazida pelo livro é: O que fazer então?
Deveríamos então desistir e declarar que a busca humana por entender a verdade e encontrar a justiça fracassou? Entramos oficialmente na era da pós-verdade? - (HARARI, 2018, p.286)
Após a leitura desses métodos é fácil perceber como esses argumentos estão presentes nas discussões e até mesmo em debates de alto nível em programas de televisão e rádio. A democratização dos meios de comunicação, especificamente a internet, tem aberto muito espaço para a geração de conteúdo irresponsável. É assustador ver o crescente número de fake news que influenciam massas e determinam os resultados de eleições. No entanto, elas não são novidade.
Harari faz uma polêmica, porém muito interessante reflexão a respeito das fake news. Não, elas não são de hoje. Muito do que era considerado "notícia" e "fato" nas redes sociais humanas há séculos e milênios atrás, era baseado em narrativas de milagres, deuses, demônios e bruxas. Como ainda são hoje.
Estou ciente de que muita gente poderá se aborrecer por eu equiparar religião com fake news, mas este é exatamente o ponto. Quando mil pessoas acreditam durante um mês numa história inventada - isso é fake news. Quando 1 bilhão de pessoas acreditam durante milhares de anos - isto é uma religião, e somos advertidos a não chamar de fake news para não ferir os sentimentos dos fiéis (ou incorrer em sua ira). (HARARI, 2018, p.290)
É compreensível que muitas pessoas se sintam ofendidas com esse tipo de comparação, mas vale lembrar - assim como faz Harari - que a verdade da Bíblia Cristã difere da verdade do Corão, o Talmude, o Livro dos Mórmons, os Vedas, o Avesta e o Livro dos Mortos egípcio. Se a Palavra Cristã for considerada verdadeira, ainda há bilhões de hindus, muçulmanos, judeus, egípcios, romanos, japoneses e tantos outros povos que tem a sua fé e confiança voltadas para as suas próprias narrativas. Isso nos leva a refletir muito, não?
As fake news foram muito utilizadas durante a era nazista pelo mago da propaganda Joseph Goebbels que dizia - acredita-se - que uma mentira contada uma vez continua sendo uma mentira, enquanto uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade. Isso não vale apenas para ideologias políticas e religiosas, as próprias empresas se utilizam dessa repetição de informações e associações falsas. Harari utiliza o exemplo da Coca-Cola e os seus anúncios publicitários. A imagem associada ao produto pela propaganda é sempre de pessoas jovens com perfis atléticos e saudáveis que consomem Coca-Cola. Não precisa ter uma grande análise crítica para entender que isso se trata de uma falsa associação. Sabemos que o refrigerante tem efeito extremamente oposto do corpo.
O ponto é que a Verdade (com V maiúsculo) nunca foi o forte da nossa espécie. Desde o princípio dos tempos nós criamos narrativas e inventamos realidades. O que parece ter funcionado muito bem para nós. Dependemos dessas histórias para agir em conjunto, para prosperar como uma espécie extremamente social. Incapaz de muitos feitos enquanto indivíduo, mas extremamente poderosa em conjunto. Mas até que ponto vamos deixar de prosperar para implodir nas nossas próprias fake news e mergulhar numa assustadora era da pós-verdade?
Presente, passado e futuro por Yuval Harari. Livros ideais para quem gosta de ser desafiado por um pensamento crítico fora da zona de conforto.
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